| filme 17 | ARCA RUSSA

Vamos falar de nostalgia.

- Acho que vi Pedro, o Grande.

- Noto um certo encantamento em sua voz. Foi interessante?

- Sim, muito interessante.

- Realmente. Na Ásia, tiranos são adorados. Quanto mais terrível for o tirano, mais sua memória é apreciada. Alexandre o Grande , Timur...e seu Pedro, o Grande.

- Você está errado sobre Pedro. Ele ensinou os russos a se divertirem.

- Pedro ordenou a execução de seu filho. O mesmo homem que ensinou as pessoas a desfrutarem a vida. Que engraçado!

A primeira vez que ouvi falar do filme foi numa lista de produções imperdíveis. Quer pela história, quer por alguma inovação tecnológica. Pois, Arca Russa se enquadra dentro dos dois critérios. Fala, com nostalgia, de uma Rússia que não existe mais, que é relíquia. Faz críticas veladas a forma como os czares em tudo tentavam imitar os franceses. Questiona também a idolatria aos tiranos. A figura que exerce essa análise crítica é a de um europeu, que caminha o filme todo junto com a câmera, interagindo com ela.

A grande diferença deste filme para outras produções com mote histórico está na forma de execução. O diretor Alexander Sokurov idealizou o projeto por 15 anos. Ensaiou coreografias por 7 meses e filmou tudo em UM DIA. O filme é feito em um único plano-sequência. O diretor usou uma câmera digital adaptada a um servidor. A medida que as imagens iam sendo gravadas, um hd externo as recebia. Uma engenhoca que provoca um resultado impossível de acreditar.

- Estas decorações não são inspiradas nos esboços de Rafael?

- Rafael, sim. Melhor que o Vaticano. Isso é São Petersburgo.

- São cópias?

- Nossas autoridades não confiam nos nossos próprios artistas.

- Russos são talentosíssimos para copiar! Por quê? Porque vocês não têm suas próprias idéias. Suas autoridades não querem que vocês as tenham. De fato, eles são tão preguiçosos quanto o resto de vocês.

- Vê aquele vaso?

- Sim! O estilo Imperial está por toda parte.

- E aquelas luminárias 'Voronikhine'.

- Luminárias...Império, Império, Império! Não me entusiasmo por ele. É um estilo muito tolo. Não se esqueça de que nasceu sob Bonaparte. Então se tornou a moda por aqui...ao ponto de se tornar o estilo nacional...em detrimento de sua originalidade.

- Combatemos Napoleão, não o estilo Imperial.

Confesso que não sou muito ligada em técnicas cinematográficas, apesar do que não me abstenho de ler coisas a respeito. Fiquei muito intrigada quando li sobre o filme. É o tipo de produção perfeita para se assistir no cinema. Entretanto, o desbunde provocado pelas imagens fica seriamente comprometido dentro de uma TV.

Outro fator preponderante na escolha do filme foi minha paixão por história. Não podia negar esse convite: encarar anos e anos da rica história russa. Por ser um plano-sequência achei que a câmera fosse adotar um tempo mais frenético. Até aí houve acerto: quando há necessidade de agilidade sentimos os passos mais apressados, quando o momento exige contemplação vemos tomadas em 360 graus ou passos bem lentos, para que possamos observar os detalhes.

- Vamos.

- Pra onde?

- Onde? Adiante

- Adiante? O que encontraremos lá?

- Lá ? Não sei.

- Ficarei.

- Adeus, Europa. Está terminado.

A gélida Rússia é um ótimo alento para o dia de hoje: impiedosamente frio, aqui na praia. Ver a neve me fez sentir até um pouco de calor e comemorar o fato de não conhecermos temperaturas abaixo de zero. Fora isso, o tom desta produção de 2002 é completamente nostálgico. Fala-se de uma Rússia que parou no tempo (assim como o Europeu – diálogo acima).

A Arca, que guarda a relíquia de uma nação é o Museu Hermitage. Sokurov fez anos e anos de história desfilarem pelos salões do lugar. É como se dentro daquele espaço ele dissesse: “aqui jaz a Rússia perdida”. É mais ou menos assim que nos sentimos quando condicionamos nossa satisfação a um tempo ou lugar que não conseguimos mais alcançar. Fazemos da lembrança ou de uma visita o elo para nos sentirmos bem, mesmo que por pouco tempo.