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| filme 110 | FLORES RARAS


Quando perder vira poesia.




A arte de perder não é nenhum mistério;
tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.

A primeira vez que tive contato com a vida de Lota de Macedo Soares e Elizabeth Bishop foi numa reportagem de capa do caderno Ela, do jornal O Globo. Não lembro quando, mas faz tempo. Bastante. Tempo suficiente para, naquela época, ter ficado instigada com a história de amor entre duas melhores, na década de 50, numa província como o Rio de Janeiro. Em 1950 não havia revolução feminista e debate sobre homossexualidade, o que me deixou ainda mais admirada pela história de amor entre uma brasileira nascida na França (Lota) e uma americana que jamais se sentiu em casa, independente do lugar em que estivesse (Elizabeth).

Demorou até que alguém tivesse a disposição para filmar um dos romances mais intensos e poderosos que se tem notícia. Disposição e coragem, porque arrumar patrocínio para uma história abertamente homossexual, num país careta ao extremo como o Brasil, deve ter sido tarefa de leão para o diretor Bruno Barreto e seus produtores. Mas ele arrumou. E teve a feliz ideia de escolher duas excelentes atrizes, que são, sem sombra de dúvida, o coração e o pulmão do filme. Glória Pires empresta vigor, vivacidade e autoestima elevadíssima para uma Lota que foi vulcão quase que a vida toda. Miranda Otto dá o ar bucólico, nostálgico, mas que não chega a ser totalmente triste para uma Elizabeth que precisou perder para se salvar.


Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subseqüente
da viagem não feita. Nada disso é sério.

O ponto assertivo escolhido por Bruno permitiu contar uma história de amor lésbico com uma pegada universal. Em tempos de defesa excessiva de um “amor homossexual” é legal ver que o diretor optou por fazer um caminho mais difícil ao dizer: “Esperem, amor é amor, não importa onde, quando e com quem”. E os destroços que ele deixa, bem como as fortalezas que constrói são iguais, sem distinção de sexo, cor ou raça. Ao não levantar bandeira, nem tentar ser politicamente correto, o diretor nos proporciona um mergulho bem mais profundo, que tem mais a ver com os efeitos causados quando decidimos entrar de corpo e alma numa relação do que aquele discurso chato e batido de “como se dá o amor entre pessoas do mesmo sexo numa sociedade preconceituosa”. Efeitos que nem sempre são tão óbvios. Onde o mais forte pode ser o mais fraco e vice versa. É sutil a mudança das personalidades no decorrer da história, e por isso mesmo o filme cresce.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

Seria perfeito se esse mergulho fosse ainda mais profundo. A inserção de poemas de Elizabeth (uma das poetisas – ou “uma das poetas”, como talvez Bishop preferisse, mais aclamadas da história da humanidade) dá o tom das modificações que ela e Lota sofrem com o tempo de relação. A contextualização histórica faz o filme perder um pouco de força, porque não existe tempo para deixar uma produção comercial enxuta e explicar direito as inclinações de direita que Lota possuía e seu trabalho com Carlos Lacerda (que é tratado mais como intelectual do que como político). Porém, é entendível que a questão histórica se faça presente: a construção do Aterro do Flamengo é ponto fundamental para que o roteiro mostre a virada na personalidade das protagonistas.

Bruno Barreto sabe fazer filmes com o padrão hollywoodiano. Estabelecido em Los Angeles e acostumado com a tecnologia de ponta ele nos dá bons planos abertos do Rio de Janeiro de 50 e 60, não são muitos, até porque a opção por mostrar mais a vida das amantes na casa de Samambaia em Petrópolis não permitiu maiores voos tecnológicos. A direção de arte é primorosa. Móveis clássicos que passaram pela deslumbrante casa de Lota e Bishop são cuidadosamente mostrados em tela. O figurino é justo, bem como fotografia e roteiro (talvez aqui pudéssemos ser presenteados com diálogos mais à altura das atrizes em cena).

— Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.
Uma Arte – Elizabeth Bishop


Por fim, é em Glória e Miranda que o filme finca sua base. Ambas estão soberbas, a tal ponto que me arrisco a dizer que indicação ao Oscar para a dupla é algo extremamente palpável. Não vi atuações superiores em 2013. Ainda falta ano, mas elas já despontam. A empatia entre as duas é tanta que as cenas íntimas são das melhores que o cinema produziu para um casal lésbico, num filme comercial. Entrega num nível máximo de duas atrizes com “A” maiúsculo. Belo filme sobre a história da dupla. Corajoso, intenso e delicado como a soma do casal que o inspirou.  

Veja alguns efeitos utilizados no filme para reconstituir a década de 50 no Rio de Janeiro, Ouro Preto entre outras cidades.



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Renata Jamús
É uma apaixonada por cinema. Foi mestre em "discursos do Oscar" na infância. Teve três ou quatro muito bons, que eram constantemente lidos para os pais babões de plantão. Os mitos hollywodianos eram como amigos da rua. Habitavam sua casa, desde sempre. | COLEÇÃO DE FILMES | FACEBOOK | TWITTER