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| filme 30 | O FABULOSO DESTINO DE AMÉLIE POULAIN
Doar antes de ter?
“Só o primeiro homem a entrar no túmulo de Tutancâmon entenderia a emoção de Amélie ao descobrir o tesouro que um menino escondera há 40 anos. Em 31 de agosto, às 4 da manhã, uma idéia iluminou Amélie. Onde estiver, ela encontrará a pista do dono da caixa e devolverá seu tesouro. Se ele se emocionar, ela se imiscuirá na vida dos outros. Se não, azar.”
Syd Field é um teórico no estudo dos roteiros de cinema. Um cara que escreveu o Manual do Roteiro, livro em que disseca o jeito de Hollywood para contar histórias. Pois, o que tem a ver Syd com esta produção francesa de 2001 e trecho logo acima? É que o renomado autor nomeou uma técnica de roteiro chamda Plot Points – conceituou dizendo que “são os eventos do roteiro que desencadeiam mudanças no rumo da trama”. O trecho acima é um plot point. Técnica hollywoodiana, inserida num roteiro francês.
- Depois de tantos anos o único personagem que ainda não consegui captar é a moça com o copo de água. Ela está no centro e, no entanto, está fora.
- Talvez seja diferente dos outros.
- Em quê?
- Não sei. Quando era pequena, não devia brincar muito com outras crianças. Talvez nunca.
Nos primeiros minutos do Fabuloso Destino de Amélie Poulain, somos apresentados aos eventos que marcaram a sua infância, bem como as cartacterísticas dos seu progenitores. De cara vemos que a criança Amélie cresceu em um mundo só seu. Solitária, mas não sozinha. A mãe não fez parte da sua vida por muito tempo e o pai sempre foi um sujeito estranho, que não expressava as emoções. Podiamos até imaginar que a pequena se tornaria uma adulta revoltada, pois bem, não foi isso que ocorreu.
“Amélie, de repente, se sente em harmonia com ela mesma. Tudo é perfeito nesse momento. A suavidade da luz, o perfume no ar, o rumor tranqüilo da cidade. Ela respira fundo. A vida lhe parece tão simples, e um desejo de ajudar toda a humanidade a toma de repente.”
Em que pese a vida solitária e o medo de se envolver, com o plot point da “caixa escondida”, Amélie toma novo rumo na vida e o filme também. Ela decide fazer o bem para aqueles que a cercam. Seja no trabalho, na família, no prédio ou na loja em que compra frutas, a mocinha decide se transformar numa heroína pós-moderna, sem poderes especiais aparentes, a não ser a imensa vontade de fazer as pessoas felizes.
- Sabe a garota do copo de água?
- Sei.
- Se parece distante, talvez seja porque está pensando em alguém.
- Em alguém do quadro?
- Não, um garoto com quem cruzou em algum lugar e sentiu que eram parecidos.
- Em outros termos, prefere imaginar uma relação com alguém ausente a criar laços com os que estão presentes.
- Ao contrário, talvez tente arrumar a bagunça da vida dos outros.
- E ela? E a bagunça na vida dela? Quem vai pôr ordem?
- Bom, melhor cuidar dos outros do que de um anão de jardim.
Porém, por mais que faça a alegria daqueles que estão ao seu rodor, Amélie não consegue fugir da vida solitária em que se meteu. Até quando se imagina vitoriosa e amada, não consegue criar um final feliz para si mesma. Como na passagem em que vê o seu próprio enterro. Ela pensa: “Amélie Poulain, chamada ‘Madrinha dos Enjeitados’ ou ‘Madona dos Infelizes’, sucumbe ao cansaço extremo. Estranho o destino dessa jovem mulher, privada dela mesma porém, tão sensível ao charme discreto das coisas simples da vida.” Como ela pode querer tanto a felicidade alheia sem imaginar alguma coisa tão boa para si mesma? Faltava algo? Talvez, o amor.
- Ela está apaixonada por ele?
- Está.
- Acho que está na hora de ela assumir o risco.
- Justamente, ela está pensando em um estratagema ...
- Ela gosta disso. De estratagemas.
- Sim. Na verdade, ela é um pouco covarde.
- Acho que é por isso que não consigo captar seu olhar.
“O desejo de ingerência de Raymond Dufayel é intolerável! Se Amélie prefere viver no sonho e ser uma moça introvertida, é direito dela. Pois estragar a própria vida é um direito inalienável!
Acontece que, por mais certezas que a gente tenha na vida, quando precisamos tomar atitudes que interfiram em nosso destino nos acovardamos. Invariavelmente, é melhor fazer coisas pelos outros do que por nós mesmos. Então, talvez por medo da rejeição, nossa heroína tenta resolver o seu problema do coração. Para se entregar ao seu escolhido ela tenta um jogo de “gato e rato”, que desperta a curiosidade e o encantamento dele.
- Então, minha querida Amélie você não tem ossos de vidro. Pode suportar os baques da vida. Se deixar passar essa chance então, com o tempo seu coração ficará tão seco e quebradiço quanto meu esqueleto. Então, vá em frente, pelo amor de Deus.
Se não fossem os empurrões daqueles que estão ao nosso redor (e que, talvez, tenhamos ajudado em algum momento), não conseguiriamos dar alguns passos adiante. Amélie é forçada a tomar as rédeas do seu destino. O diretor Jean-Pierre Jeunet construiu uma heroina de carne, osso e muito senso de humor. Suas obras de justiça são impagáveis, principalmente com o dono da mercearia e com seu pai. O esmero visual e a câmera que passeia nervosamente por diversos ângulos fazem do filme uma obra tão autoral quanto comercial (já que o tema é universal).
Me fiz uma pergunta ao final da projeção: quantas Amélies estão por aí? Perdidas em seus caminhos individuais, doando amor e compaixão por outros e sem coragem para definir os rumos das suas próprias vidas. Para essas heroinas eu desejo aquilo que a Amélie da ficção encontrou: AMOR!