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| filme 31 | MORANGO E CHOCOLATE
Ame e odeie a sua pátria!
- Posso me sentar? Não resisti a tentação. Amo morango! É a única coisa que presta que se faz neste país. Daqui a pouco exportam tudo e para nós sobrará água com açucar. Ui! Hoje é meu dia de sorte! Encontro maravilhas.
Morango e Chocolate é um filme político. O mais interessante de tudo é que os diretores Tomás Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabío fazem um autêntico manifesto num filme que foi patrocinado pelo governo cubano. A produção (que foi indicada ao Oscar de 1995 – melhor filme estrangeiro) narra a vida de dois homens cubanos: David é um estudante universitário, membro da juventude governista, completamente favorável ao regime do ditador Fidel Castro; Diego é um artista gay, e que, apenas e tão somente por isso, já é marginalizado dentro do próprio país.
- Verifique seu caso.
- Que caso?
- Como que caso? O da bicha.
- Esqueça isso. Não tem importância.
- Está louco? O que você disse estava certo. Tem que investigar.
- Investigar o que?
- Tudo! A embaixada, a exposição. Tem que arrumar uma desculpa para voltar na casa dele.
- Por que? Ele é só uma bicha!
- Por isso mesmo. Isto é muito importante. É uma missão! Você acha que se pode confiar
em um sujeito que não é fiel ao seu próprio sexo?
Um dos primeiros filmes que mostrou o tratamento dado aos gays em Cuba foi este. O ator Jorge Perugorria, que interpreta o afetado Diego, conseguiu construir um personagem com uma clara dimensão de humanidade. Apesar de criticar a Revolução, não abandona a sua terra e tenta, de todas as formas, ajudar os seus amigos, mostrando a eles que ter senso crítico é tão importante quanto apoiar a revolução incondicionalmente. Além disso, mesmo com toda a dor da vida que leva, Diego é um sujeito extremamente positivo.
- Olhe, Davi vamos jogar limpo. Bem, você sabe... eu sou...você sabe..Também sou religioso.
- Eu sou materialista dialético, que isso importa?
- Hoje você parece outro.
- Não, hoje eu sou como sou. No outro dia não era eu.
- Mas tem mais. Eu tenho tido problemas com o sistema...
- De que tipo?
- De todo tipo. Os vizinho me vigiam, não faço trabalho voluntário. No trabalho não me deixam em paz.
- Eu acho que cada um tem direito de fazer de sua vida o que quiser...
- A revolução precisa de mais militantes como você.
- Vou te mostrar que nós comunistas não somos tão selvagens como pensa.
A relação que se estabelece entre Diego e David é o combustível que faz o filme andar. Os diálogos entre os dois são espetaculares e exploram, até a exaustão, temas como patriotismo, segurança nacional, soberania e liberdade de expressão.
Além disso, vemos com clareza que a ideia foi construir uma dialética da revolução. Temos a tese, personificada em David – um filho de camponeses, categoria que foi a mais favorecida com a ditadura Castrista, a antítese, na figura do homossexual Diego – um marginalizado, pertencente a um grupo de cubanos que, nas décadas de 1960 e 1970 (época em que se passa o filme), eram enviados aos chamados "campos de reeducação" com o objetivo de serem "regenerados", a obra completa (o filme como um todo) seria a síntese. A construção dialética dos diretores.
- Me diga uma coisa. Por que estuda ciência política se gosta de literatura?
- Porque acho que devemos estudar o que é mais útil pra sociedade. Estou na Universidade graças a Revolução. Nunca poderia sem ela.
- Companheiro, temos que respeitar as vocações. Davi, esta indo contra você mesmo! Tenho um amigo que quando criança tinha um talento extraordinário para piano, mas seu pai foi contra, dizendo que arte era coisa de afeminados. Hoje meu amigo tem 60 anos, é bicha e não sabe tocar piano.
O lado sombrio da Cuba de Diego, que nega aos seus filhos o prazer de uma boa leitura, de uma Revolução que não é inclusiva e não respeita as essências de cada um, está presente. Mas, em nenhum momento somos privados do lado alegre e apaixonante da Cuba vista por David (e que também é admirada por Diego). O país da música, dança, da religiosidade fortemente influenciada pelas crenças africanas, de um povo solidário.
Esta é a Cuba da síntese. A Cuba, a Ilha, que existia antes de Fidel, de Che. Um país soberano desde sempre, que possui história, que já existia antes da Revolução. A alma deste país é o que a dupla de diretores nos faz enxergar, com maestria, durante todo o filme. Vi Morango e Chocolate pela primeira vez com apenas 16 anos. Era o auge dos debates acalorados com os amigos e suas camisas do Che Guevara. Um belo dia, decidi não insistir. Fui ver o filme e recomendei. Ver um filme, defensor e crítico ao mesmo tempo, feito com tanta sensibilidade nos faz enxergar além. Para todos os lados. Expandiu minha visão e ajudou a abrir os olhos de alguns. Filmão!